sábado, 22 de abril de 2023

Uma forma de sobreviver

 


Tornar-se livreiro daria algum insignificante sentido à sua vida, ajudaria talvez a vencer a solidão, se o quisesse. Mas estar só tornara-se, entretanto, o seu modo de ser. 

Aquela casa, outrora uma povoada mansão, era agora refúgio, habitado por si e apenas por um casal, já idoso, que se conservara, fiel aos seus antigos patrões, num anexo ao fundo do jardim, nas traseiras da vivenda, o único espaço que, por eles acarinhado, se conservara cuidado, os únicos que lhe garantiam a comodidade de alguma ajuda.

Uma livraria talvez, mas num futuro, eventualidade a pensar, assim surgisse da ideia um contorno mais concreto e não apenas um impulsivo sentimento. 

Custava-lhe, como se os desprezasse, vender o que fosse e a quem seja, os livros daquela infinita biblioteca, de que se ia apercebendo agora a diversidade dos temas, o cuidado da selecção, conseguido que estava reconstituir-lhe uma certa ordem por sobre o caos em que os haviam tornado.

No momento presente, o desejo, difuso embora, era o de escrever, talvez editar-se como forma de levar a outros a sua voz. 

Era essa a forma em que se revia a ter companhia, presenças sem intromissão, leitores que lhe escrevessem talvez, mas não humanos que irrompessem na sua vida, mesmo que desejados ou apenas apetecidos.

Neste entardecer deu consigo a olhar para quantas folhas soltas, manuscritas todas, tinha redigido, esgotados dias em que, durante anos, fora ali perceptor. E da contemplação surgiu, com a nitidez da certeza, a rota do que seria uma outra forma de sobreviver.

sábado, 10 de abril de 2021

Aparências do mesmo


Supôs que naquela parte quase exterior do que fora mansão e de que era agora o único habitante pudesse dar vida a um pequeno negócio e de todos eles, o possível, talvez uma livraria ou algo que tivesse na livraria os seus alicerces.

Havia praticamente em todas as divisões, e mesmo nos mais inesperados locais, livros, dezenas livros repetidos, tantos de sucessivas edições, de distintos editores. E talvez surgissem leitores, daqueles para quem ler uma qualquer obra, folheá-la ao menos, fosse qual a edição, mesmo a mais descuidada, bastasse como realidade suficiente. 

Não que lhe agradasse a ideia, espírito cultivado que era, ele para quem cada livro era um momento próprio na vida do seu autor, e precisamente aquele instante que fundira a indústria tipográfica à arte da paginação, a escolha do tipo e corpo de letra, o desenho da capa, a selecção do papel que seria impresso, o risco de não haver para quem.

Além disso, sentir, antecipada, a intrusão daqueles, formigantes, para quem qualquer livro serviria, ou mesmo a sombra pesada dos que vinham por lassidão ou curiosidade, doía-lhe, mas não não menos do que a noção de que, a não encontrar venda, teria de jogar ao abandono os tomos duplicados, as obras de pior edição, as que a desastrada encadernação assassinara o valor. 

Vender e com isso ter de apreçar, expor-se para que houvesse montra para essa parte inútil da agora sua biblioteca, idos os que sucessivamente lhe tinham dado vida, tornando-a livraria, manter entreaberta a porta gerava em si o desconforto da novidade e da não pertença. 

E depois o entorpecimento de sedentarizar-se para ali estar presente e disponível às horas de comércio, esperar, em modorra e agonia, a chegada do primeiro possível comprador e mais nenhum surgir num dia de alma a chover, não havia palavra que descrevesse o antecipado horror.

Foi a luminosidade na vidraça que o fez desistir. Era Sábado e ninguém na rua onde raramente havia viandantes. 

Começou então a juntá-los, os melhores e os piores, as edições em papel barato e capa a soltar-se, alguns com dedicatórias que o tempo tornara ridiculamente inúteis outros já lombada partida à força de terem sido repetidamente lidos ou dobrados cruelmente no acto de ler, os encadernados e com letras na lombada ferradas a ouro, aparências, afinal, do mesmo, formas tão diferentes de tentarem ser.


sexta-feira, 20 de março de 2020

Suspenso o tempo

Espécie de peste da alma, o recolhimento forçado poderia ter-lhe dado a oportunidade de se rever. Mas eram as coisas pequenas, insignificantes fossem, que lhe ocupavam o espírito, minuciosamente. Rasgava papéis e arrumava nas estantes livros por uma ordem imaginária.
Poderia ler, mas não lia. Ter nas mãos os livros adivinhando-lhes o conteúdo era já uma forma de iludir o facto. Entreabria alguns surpreendendo-se ante o que neles sublinhara, mostra de que em tempos os tinha mais do que lido, estudado, mas eram agora vazios na memória, nem sequer convite a tentar, pela releitura, rememorar o que ali estava, agora como se caracteres de uma língua ignota.
A inércia e a destruição deram-lhe o sentido quanto a onde está o critério da importância. 
Ser bisonho e isolado, a clausura não o afligia ou as ruas desertas. Havia, enfim, uma certa paz, como se no cronómetro da vida, premido o botão, se suspendesse o Tempo, confinando, enfim, o Espaço.
Iludia o medo através da monotonia.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

A pálida névoa

Decidira-se a ter tempo, não o tempo antigo das madrugadas e das noites insones, o tempo dos intervalos das obrigações, sim a liberdade do tempo errático que se oferecia com luxo e laçarote. 
Decidira-se, vencidas listas e agendas e todos os modos humanos e tecnológicos de se organizar. Acordava agora sem despertador, guiado apenas pela claridade do dia anunciando-se, sentida no fundo dos lençóis a frescura que os pés, ávidos, procuravam, aninhado no lado mais morno para que, estirando-se, ronronante, podendo adormecer, isso não tivesse, enfim, sabor a culpa.
O tempo de vida era-lhe cada vez mais escasso e decidira-se, por isso, a saboreá-lo sem aquela fome antiga de mendigo, engasgado então pelos minutos que conseguia abocanhar à cronologia. Vivia, precisamente ao invés do tempo restante, regressado ao tempo primordial.
Mantinha-se tudo intacto na aparência, os compromissos e as contas por pagar. A própria rua não mudara, nem o semblante expectante e carrancudo dos que o esperavam à porta dos deveres e da sua profissão. 
Passeando-se, vagueante pela cidade e seus esconsos, mesmo quando não saía de casa e os passos eram só os da fantasia, ninguém diria que mudara. 
Era esse o seu segredo: tornara-se outro para ser, enfim, a sua própria pessoa. Uma pálida névoa definia-lhe a luz.

domingo, 26 de maio de 2019

Excerto de tempo

Abatera-se o cansaço e com ele o desalento. A vida parecia condenada ao confinamento, a liberdade de querer restringia-se àquele recanto em que revivia o que tinha sido a vida dos outros. Haveria sol e com ele o encantamento da esperança. Quantas vezes naquele excerto de tempo teria havido contentamento? A velha máquina de escrever ficara e os livros, os que se aninharam naquele recanto. Do que pudesse ter sido escrito não ficara presença, nem do riso que pudesse ter dado cor estridente àquele breve instante. Restava, reflexamente, olhá-lo como a um espelho desbotado e rever-se. Aos Domingos até a monotonia se tornava triste.

domingo, 21 de abril de 2019

Estado de incerteza

Naquele local o recolhimento criava a ilusão de que não haveria em redor. Os ruídos chegavam coados, como a luz através dos reposteiros. Nos dias em que se pressentia no exterior calor, porque estava Sol, ali, havia sempre como uma névoa friorenta. A vontade de sair começara a entorpecer e com isso a modorra dava em aborrecimento.
Ao final do corredor, um pátio e antes dele a cozinha.
Sentara-se ali, sem motivo ou ideia. Talvez tivesse fome, mas adiava o momento de uma refeição. Da última vez que saíra à rua, para compras, esquecera muito do que lhe faltava. Nos dias feriados era mais difícil suprir esquecimento, naquela morada mais ainda por haver tão pouco.
A Primavera parecia ter chegado em mês de chuva. E com isso um estado de incerteza. E confusão.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

O lugar e seus fantasmas

Conseguir é neste diário um dos verbos mais usados, pois tudo é esforço e pertinaz resiliência. Em redor, o mundo de todos os outros amiúde convida a desistir. 
Poderia ter tido uma profissão, obrigatória porque necessária, por razões minhas ou pelo sustento dos deveres que se trazem a este mundo, o que me trouxe aqui, e foi; teria sido possível esquecê-la tivesse gerido a vida de modo a  tornar em liberdade quanto fora sujeição.
Ao não o ter conseguido o para tantos óbvio, resta agora não supor objectivos aquém do possível e viver rejeitando precisamente essa ideia miserável de sobreviver do remanescente. E sofrer com isso a angústia das noites sobrecarregadas após um um dia arcando deveres. Todos os dias.
Olhando hoje em redor, perdido o quotidiano de quem foi aqui preceptor de dois indomáveis adolescentes,  recuperado do espaço o domínio e do tempo todas as possibilidades, hesito ao primeiro umbral de porta, como se a penumbra de reposteiros coasse do lugar os seus fantasmas e do belo restasse, pelo abandono, a depredação.

sábado, 3 de novembro de 2018

A digna grandeza sóbria

Cada dia mais difícil lhe era suportar no exterior o luz e ruído, o aglomerado de gente e o sem sentido dessa dissonância. Inventariava, ao anoitecer, o percurso mínimo e mais breve permanência, meticulosamente, curtas incursões. A distância tornara-se pesadelo por causa da permanência que lhe alongaria ao tempo.
Escolhia sobretudo as horas. Uma longa paciência fazia-o descobrir o momento mais provável em que uma exigência não fosse agressão. 
No recôndito local encontrara o local certo para comprar comida e onde comer. Era dos poucos que ali frequentava a estação dos correios, porque raros eram já quantos escreviam cartas, igualmente os que recebiam livros. 
A tudo isto sobejava no quotidiano a farmácia, estranhamente o que ficara de um antigo horto e uma venda de materiais de construção.
Com tanto se bastava e era, afinal, pouco. A neurose da solidão diminui-lha a necessidade e o desejo.
Habitava, pois, um mundo recolhido, onde reconstruía o interior depredado, conquistando, sala após sala, do lugar a digna grandeza sóbria que em tempos conhecera. Fazia-o pelo esforço das suas próprias mãos. 
Nessa manhã picava, paciente, o apodrecido reboco, que, caindo envolto em pó, devolvia à vista a primitiva tijoleira, ocre, incerta, esboroada.  

domingo, 23 de setembro de 2018

Da luz, o grotesco ruído

Tornara-se insuportável o exterior. O ruído da luz, mirrados os olhos, a dor ensanguentada de sensações. Em cada recanto do breve passeio, lixo acumulado e o seu cheiro, dejectos de vidas feitas de sobejos e desperdício. Regressava cada vez mais rápido, perdia-se cada vez menos em passeios errantes.
A cidade tornara-se inferno público. Na própria aparência vistosa se pressentia o corroer intestino da decadência.
Talvez no Domingo cedo pela manhã, antes que hordas povoassem os lugares, ocupando-os, vai-vem rodopiante como enxames, a paz fosse possível e na cidade um jardim. E sem que em tudo a arrogância da falta de maneiras, ausência generalizada sequer de um propósito, individualidades ao acaso, sem nexo, olhando tudo vendo nada. Fotografando, aprisionando do real a ilusão de que tinham estado na sua essência.
Haveria seguramente ilhotas escondidas ainda poupadas pelo desconhecimento, poupadas ao conflito e à depredação.
Naquele dia a cabeça incendiara-se de um colorido estonteante. Tremiam-lhe, incontroladas, as mãos e sentia do próprio hálito o horror.
Refugiara-se, folheando entretanto jornais. Em cada dia lhe parecia que, pensando por momentos, havia muito menos para ler do que se tinha escrito. Dobrava cuidadosamente as folhas.
Nunca vivera de ideias mas de sentimentos, feios os daquele dia. Um instante de beleza talvez-lhe pela esperança lhe trouxesse a salvação.

sábado, 9 de junho de 2018

Viver o suficiente

Conseguira, enfim, remover da casa tudo quanto era velharia que o tempo apodrecera. Depois, o que se misturava de moderno, corrompendo o espírito do lugar. Guardou do inútil o que era símbolo e estilo, muitíssimo, pois. Da velha torradeira substitui-lhe, com paciência, o fio eléctrico por outro em que não se notava a contemporaneidade, para os candeeiros lâmpadas cuja luz parecia que o Sol se abrigara no interior do lar.
Olhava, enfim, consigo tranquilo, a paz do lugar e o toque de classe que tivera no tempo em que ali fora apenas hóspede e serviçal. Agora, diria, que o trabalho lhe legitimava o esforço, a reconstituição do que ninguém tinha querido para si. Fruía o que salvara do esquecimento e do caos.
Da família que ali habitava restava, apenas, o vestígio da sua memória e os descompostos bens que nunca tinham sabido preservar. 
Amontoara no corredor, para última tarefa, os livros mais recentes, que teria de classificar antes de lhe encontrar lugar. Talvez ali mesmo, entre o empedrado do chão e o florescer da vegetação doméstica, para que a Natureza lhes desse viço e envelhecimento. Então, sim, teriam vivido o suficiente para que a velha casa os aceitasse.

domingo, 19 de março de 2017

O inesperado recanto


Paciente, conseguira remover, à força de braço, tudo quanto atravancara a velha janela e, aos seus surpreendidos olhos, como se conservada pelo tempo, fora de todo o tempo, ali estava, rompido o tabique que a ocultava, diria uma alcova, não fora a impudicícia da palavra ferir o recato de horas mansas que fora dado viver. Apenas uma fina poeira, marcava o isolamento em que tudo ficara.
A um e um, todos os livros arrumados, pinceladas agora as folhas, como se a acariciá-las para que delas voltassem a frescura e viço de quando as li. Restituída a luz eléctrica, difusa amarelecia tal qual o Sol aquele inesperado recanto.
Hoje o dia deu em quente até quase ao entardecer. Distraídos os olhos, contemplava o sonho, olhando distraidamente a distância do lugar. Paciente, conseguira remover do lugar o esquecimento.

sábado, 28 de janeiro de 2017

O provável acaso


Conseguira, com esforço e paciência, multiplicando tentativas, recuperando o que fora encontrando, entre o disperso e o descuidado, pelas salas abandonadas do velho casarão, compor um recanto a que poderia chamar seu. Os dias gélidos de Inverno restituíam-no ao interior de onde saía o necessário apenas.
Vazio ainda o espaço, aguardava que conseguisse trazer para cima, um a um, os móveis que minuciosamente polira, aplainadas as falhas na madeira, remendados tecidos que o bolor fizera desbotar, lavada a baixela já ímpar ante quanto se perdera.
Houve tempos em que o esmero era ali regra, o desalinho falta de condição. O mundo a reconstruir tentava ser disso um pálido espelho.
Vinda do exterior, a luz do amanhecer tinha-lhe restituído a esperança, compensando na alma a força que no corpo lhe faltava.
Depois, havia o como subir o pesado roupeiro, maciço, de fundas gavetas que um qualquer artifício tornavam inseparáveis do corpo, ao qual um pesado mármore dava cobertura, azuláceas veias sob a alvura, como as dos seus braços pendentes, agora que adormecera, caído no chão, meio por ler, um jornal antigo que o acaso provavelmente trouxera.

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Fonte da imagem: aqui

sábado, 1 de outubro de 2016

O escurecer da escrita


Decidira-se a escrever um livro sem saber ao certo o que poderia ser. Não sobre a sua vida, porque nada haveria vivido que merecesse ficar como memória, nem a vida alheia de que fora acidental testemunha poris o decoro o vinculava à reserva. 
Talvez um livro de ideias se não fosse o tímido receio de estarem tão esgotadas quanto inúteis num mundo que subsistia de coisas práticas.
O seu pequeno mundo confinara-se, afinal, a insignificâncias: não havia jornais comuns que lesse ou revistas selectivas de que fosse assinante.  Um dia dera consigo a folhear demoradamente ícones de uma religião cuja doutrina lhe não interessava, mas de que a púrpura das imagens o fascinava como um incandescente Sol, mais a rigidez eternizada das imagens, figuras em ritual sem genuflexão, sob um céu abobadado cintilante mas puramente astral sem grandeza de última divina morada mas tecto de humanos recolhidos à contemplação de si
Naquele dia iniciara umas poucas folhas desse livro. Rasgadas, já não houve outra que se lhes seguissem. 
Incapaz de tornar a primeira linha do seu escrito centrada com a quadrícula do papel, sentiu-lhe na irregularidade o pressentimento da impossibilidade. O raspar do aparo ouvia-o com a dor se a alma se lhe rasgar em fissura pela qual o corpo se lhe escapasse.
A um tremor de mãos somara-se a insídia de magoar e tanto o pulso, rígida a caneta, enclavinhada entre os dedos e já sem jeito, há tanto tempo que não a tomava para que do coração esvaísse um sentimento, do cérebro uma forma de pensar.
Decidira-se em tempos a escrever, rasgadas estavam, porém, as folhas, ao escurecer dos olhos, a noite a apiedar-se de si, através da sonolência e do cansaço, da memória não ficar traço que o demonstrasse..

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Fonte da imagem: quadro de Leonid Pasternak, aqui

domingo, 7 de agosto de 2016

A paz tranquila


Tremendo, zumbindo como praga, refulgente, mau, o calor. Refugio-me desde há semanas na pequena casa que foi estufa, metade dela com esconsa cave onde o fresco se retém, a semi-obscuridade torna a luminosidade macia e dói menos, sobretudo, o espectro da ausência. Onde nenhum som chega, murmúrios apenas, como se todo o real fosse abstracto e longínquo. Onde tudo se conservou como um museu que fosse da casa a memória do seu requinte. E de que fiz habitação.
Houve tempos em que, desenhava letra a letra cada uma das letras do abecedário, em cadernos de duas linhas, fazendo a mão afeiçoar-se para que as lançasse, direitas em lanço oblíquo, atenção à perna do jota e à haste do agá, que os dois érres de não confundissem. E temia a cada falha. E aquela fila sem nexo de símbolos que nem palavras formavam queriam então dizer nada. Mas olhando-os, sentia o orgulho contido da beleza caligráfica como se de mim a paz tranquila. E ensinei ali o mesmo, ocupando os tempos de férias a quem não as teria, a fazer assim.
Hoje, sentado à velha secretária, cujo tampo já foi pele e hoje a magoam rasgados dela e vincos de malvadez descuidada, verde e desbotada, tento, papel macio que encontrei, esquecido em uma das gavetas, escrever que seja o quê nem sei como.
Apenas o silêncio e o calor. O refúgio do lugar. Este Verão com instintos de sangue. 
Nenhuma memória justifica porque há tantas e são inúteis, nenhuma ficção por estar tudo inventado quando daria outra vida ao que se viver. De nenhum sentimento seria capaz de captar a forma de o escrever. A tarde vai lenta, escorrendo, e é Domingo.

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Fonte da imagem: aqui

sábado, 28 de maio de 2016

Acetinado, o leito


Deverei, reconduzindo-me a quanto fui, ocupar amanhã o quartinho que era o meu, o telhado como céu, livros a afagarem-me como presença, deixando vazios os salões, ausentes que estão definitivamente agora aqueles que lhes talharam o estilo e os povoaram da sua presença legítima e a de seus convivas?
Amputar-me-ei do direito a estar, agora só, da liberdade de me expandir, a possibilidade de tudo modificar, alienar, substituir, destruir mesmo, afeiçoando a casa ao que possa ser?
Mas quem sou eu, aquele ao qual, anos volvidos de acanhamento, subtraíram da personalidade a característica?
Ter sido aquilo que me coube ser nesta casa, confinado em espaço, contido nos gestos, parco nas expressões, ter afundado no denso interior do recato o sentimento, gerou, é certo, a afeição, aquilo que simula familiaridade, longínqua embora, mas ressequiu também, como se a de um estranho pudesse ser, a individualidade, a possibilidade de viver, ilimitadas, as sensações.
A máscara em que me tornei identifica-me com as paredes desta casa e seu papel desbotado, tornando-me com o decorrer do tempo, invisível como os seus móveis e deles em nada destoante.
Imponente, o leito possível ruboriza-me de pudor. Suponho, difusa memória, que foi por todo o tempo tálamo conjugal daqueles que servi, educando-lhes os filhos, mas imagino, vincada fantasia esta, que de Madame as formas e o odor terão aqui ficado, como lençol acetinado ainda morno, cujo suave roçagar me não será consentido.
Sei que o tempo destrói, desfeia, gera no presente o horror. Não, porém, o que o corpo sente quando os olhos se recusam a ver e o mundo se torna hoje a ânsia do desejo antigo por honrar.

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Fonte da imagem: aqui