terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Os intervalos da vida

Encontrei-a no interior de um livro, o canto amarelecido pela exposição ao luz e ao pó, a fotografia. Há nela a rictus da obediência, aquela espécie de contracção muscular dos que não se compreendem nem aos intervalos da vida que lhes possibilitam o ser. São criaturas para quem o dia é estranho pela ferente luminosidade, o exterior adversário da interioridade a que se acolhem. E depois o tempo, que parece deixá-los eternamente idênticos, tornando-lhes mais do que antiquadas as roupas, ridículos os modos. Já não existem pessoas assim mas no entanto estas sobrevivem ao devir do tempo como se a vida lhes fosse dada a viver numa outra dimensão, suspenso o espaço.
Talvez tenha sido por sermos assim que eu sou aquilo que é. Olho-me, reconhecendo-me, e recolho o livro a um lugar ignoto, como se a sepultar a memória para que o futura tenha uma fresta de oportunidade de frutificar.

domingo, 1 de janeiro de 2012

A langorosa alucinação

A ideia é que eu levasse a velha viatura a desenferrujar as rodas, para que a bateria não morresse e todos sentissem que não era inútil terem na família aquela magnífica máquina, «do tempo em que se fabricavam automóveis e não electrodomésticos». 
Hesitante, receoso de que qualquer engasgamento meu ou tropeção do carro nos encravasse entre o trânsito, rolávamos pela marginal, o mar na sua quietude ondulada a seguir-nos o passeio.
Imerso na nocturna escuridão, os meus olhos confinavam-se no ponto imaginário do horizonte à minha frente, embalado pelo ronronar do motor, seguindo o trajecto das luzes vermelhas em longa fila de paciência.
De súbito a alucinação de Madame, reclinando-se, langorosa, o vidro aberto, a brisa escaldante da noite, o fumo azuláceo de um cigarro, a sugerir-me, carnuda e incandescente, o mais devagar, que tínhamos o tempo como pretexto e o lugar como oportunidade. 
Foi naquele preciso instante de irrealidade que um arranque do acaso me guinou os ímpetos como um murro no atrevimento: por um triz abalroava um obscuro ciclista, lugar comum velocípede perdido também pela estrada do sonho. Estaquei eu por ter travão, descontroladamente.