A ideia é que eu levasse a velha viatura a desenferrujar as rodas, para que a bateria não morresse e todos sentissem que não era inútil terem na família aquela magnífica máquina, «do tempo em que se fabricavam automóveis e não electrodomésticos».
Hesitante, receoso de que qualquer engasgamento meu ou tropeção do carro nos encravasse entre o trânsito, rolávamos pela marginal, o mar na sua quietude ondulada a seguir-nos o passeio.
Imerso na nocturna escuridão, os meus olhos confinavam-se no ponto imaginário do horizonte à minha frente, embalado pelo ronronar do motor, seguindo o trajecto das luzes vermelhas em longa fila de paciência.
De súbito a alucinação de Madame, reclinando-se, langorosa, o vidro aberto, a brisa escaldante da noite, o fumo azuláceo de um cigarro, a sugerir-me, carnuda e incandescente, o mais devagar, que tínhamos o tempo como pretexto e o lugar como oportunidade.
Foi naquele preciso instante de irrealidade que um arranque do acaso me guinou os ímpetos como um murro no atrevimento: por um triz abalroava um obscuro ciclista, lugar comum velocípede perdido também pela estrada do sonho. Estaquei eu por ter travão, descontroladamente.