O sentir-se um homem estrangeiro nesta época de Natal é talvez o mais triste sentimento de quantas tristeza o Natal consigo arrasta. Ou hóspede. Desde há alguns dias que a casa se engalanara, com sobriedade embora. Primeiro, tinham sido as profundas limpezas, talvez em nome da superstição de que o novo ano teria de ser recebido com espírito de mudança e de cara lavada. Agora, para o fim, já era o odor do açúcar a infiltrar-se por cada recanto, ao princípio como uma carícia, depois já como um enjoo que nem a canela compensava ou a casca de limão. E a azáfama.
Penso que estavam todos certos que a minha ausência lhes facilitaria a vida, evitando terem de me convidar para a mesa e de terem de ma negar na noite da consoada, confinando-me ao meu quartinho. Por outro lado, não haveria mais deprimente figura que a de homem só para ensombrar o Natal alheio ou o convite que não se sabe como evitar.
Inventara, pois, uns amigos que me aguardavam para esse dia. A 23 já tinha pronta a minha malinha e ao acordarem a 24 já o conforto da minha partida preencheria, com ausência, aquele lar de que eu era no momento apenas uma circunstância útil.
Cheguei à gare do destino umas horas depois. Havia sol e o frio recolhera para detrás das montanhas que davam ao local a muralha que lhe permitiam ter sobrevivido à contemporaneidade.
Dera-me a mim próprio o conforto de um quarto espaçoso no melhor hotel. Ao transpor o hall da entrada, confirmava-se o meu melhor vaticínio: turistas, daqueles para quem a família já morreu, como ideia ou como necessidade, haviam optado pelo mesmo destino.Visivelmente alguns habitualmente.
Ao declinar a profissão escrevi professor. Tinha sido verdade integral, hoje resíduo de significado, mas a natureza de um ser não se perde quando os factos o vão amputando. Cortadas as pernas, o homem já privado de braços ainda é um homem até que lhe cesse o coração.
E eis-me então, a esquadrinhar o lugar e tudo o que nele se pode esperar, uma estância termal de águas quentes, incluindo os banhos, subterrâneos, território labiríntico escavado na rocha, desembocando numa enseada, que se o paraíso assim fosse, em catacumba, assim seria, em tom de azul.
Regressei há pouco da piscina, restituído ao corpo o conforto carinhoso de um útero morno no qual, fechados os olhos, me sonhei devolvido ao lugar primordial da existência.
Esta noite vestirei o meu melhor fato e a gravata de seda que me deste. Ao atravessar, pela hora da ceia, o umbral da casa de jantar, transpostas as colunas, que são das pesadas portas de carvalho o ornato e o suporte, restituir-me-ei à personagem de que sou o melhor intérprete: a categoria pessoal que a necessidade tornou serviçal.
A solidão é a nobreza dos que querem escapar ao condoído de todos os outros, o sentimento de generalizada pena que é o desta época, perdida a inocência e sem sabermos já sequer o que fazer com a dignidade e compostura, as lágrimas contidas na garganta, as mãos vazias.