Com a chegada do Inverno há cada vez menos calor sobejante nesta casa. O grande salão de jantar é túnel frigorífico que uma lareira compensaria, acaso a acendessem. Houve tempos, soube pela antiquíssima governanta, em que funcionava dia e noite. Hoje os senhores recuaram para o reservado de uma saleta recolhida, forrada a papel esbatido, onde se anicham em torno de uma salamandra, rodeando uma mesa-camilha, de pesada saia.
Apenas o almoço é refeição. Ao jantar defendem-se argumentativamente. Madame porque a bem dizer é doente e come pouco, seu esposo porque «tu também, faz-te mal comeres muito à noite». Apenas aos meninos é concedida a vantagem de melhor vida, protegidos na copa pela cozinheira e suas artes de transmutar sobras da véspera em pratos de substância, para não falar nas enigmáticas vitualhas, as quais chegam do mistério do sabiamente gerido rol da mercearia e seus segredos.
A diferença entre a penúria e o chic é que este encontra sempre uma razão que o legitima. É esta a filosofia que me falta.
O pessoal doméstico e outros serviçais, como a minha pessoa enquanto preceptor dos meninos, isso faz parte, porém, daquele mínimo além do qual já só restaria o brasão da família.
«Um destes dias vou pedir-lhe que se ocupe dos meus papéis», disse-me ontem o marido de Madame. Precisamente nessa qualidade, a de marido de, porquanto me tenho interrogado se terá vida própria ou algo que o individualize.
«Tem tempo livre que chegue», rematou afirmando como quem pergunta, antes que eu tivesse respondido.