sábado, 28 de maio de 2016

Acetinado, o leito


Deverei, reconduzindo-me a quanto fui, ocupar amanhã o quartinho que era o meu, o telhado como céu, livros a afagarem-me como presença, deixando vazios os salões, ausentes que estão definitivamente agora aqueles que lhes talharam o estilo e os povoaram da sua presença legítima e a de seus convivas?
Amputar-me-ei do direito a estar, agora só, da liberdade de me expandir, a possibilidade de tudo modificar, alienar, substituir, destruir mesmo, afeiçoando a casa ao que possa ser?
Mas quem sou eu, aquele ao qual, anos volvidos de acanhamento, subtraíram da personalidade a característica?
Ter sido aquilo que me coube ser nesta casa, confinado em espaço, contido nos gestos, parco nas expressões, ter afundado no denso interior do recato o sentimento, gerou, é certo, a afeição, aquilo que simula familiaridade, longínqua embora, mas ressequiu também, como se a de um estranho pudesse ser, a individualidade, a possibilidade de viver, ilimitadas, as sensações.
A máscara em que me tornei identifica-me com as paredes desta casa e seu papel desbotado, tornando-me com o decorrer do tempo, invisível como os seus móveis e deles em nada destoante.
Imponente, o leito possível ruboriza-me de pudor. Suponho, difusa memória, que foi por todo o tempo tálamo conjugal daqueles que servi, educando-lhes os filhos, mas imagino, vincada fantasia esta, que de Madame as formas e o odor terão aqui ficado, como lençol acetinado ainda morno, cujo suave roçagar me não será consentido.
Sei que o tempo destrói, desfeia, gera no presente o horror. Não, porém, o que o corpo sente quando os olhos se recusam a ver e o mundo se torna hoje a ânsia do desejo antigo por honrar.

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Fonte da imagem: aqui