sexta-feira, 20 de março de 2020

Suspenso o tempo

Espécie de peste da alma, o recolhimento forçado poderia ter-lhe dado a oportunidade de se rever. Mas eram as coisas pequenas, insignificantes fossem, que lhe ocupavam o espírito, minuciosamente. Rasgava papéis e arrumava nas estantes livros por uma ordem imaginária.
Poderia ler, mas não lia. Ter nas mãos os livros adivinhando-lhes o conteúdo era já uma forma de iludir o facto. Entreabria alguns surpreendendo-se ante o que neles sublinhara, mostra de que em tempos os tinha mais do que lido, estudado, mas eram agora vazios na memória, nem sequer convite a tentar, pela releitura, rememorar o que ali estava, agora como se caracteres de uma língua ignota.
A inércia e a destruição deram-lhe o sentido quanto a onde está o critério da importância. 
Ser bisonho e isolado, a clausura não o afligia ou as ruas desertas. Havia, enfim, uma certa paz, como se no cronómetro da vida, premido o botão, se suspendesse o Tempo, confinando, enfim, o Espaço.
Iludia o medo através da monotonia.