quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

A pálida névoa

Decidira-se a ter tempo, não o tempo antigo das madrugadas e das noites insones, o tempo dos intervalos das obrigações, sim a liberdade do tempo errático que se oferecia com luxo e laçarote. 
Decidira-se, vencidas listas e agendas e todos os modos humanos e tecnológicos de se organizar. Acordava agora sem despertador, guiado apenas pela claridade do dia anunciando-se, sentida no fundo dos lençóis a frescura que os pés, ávidos, procuravam, aninhado no lado mais morno para que, estirando-se, ronronante, podendo adormecer, isso não tivesse, enfim, sabor a culpa.
O tempo de vida era-lhe cada vez mais escasso e decidira-se, por isso, a saboreá-lo sem aquela fome antiga de mendigo, engasgado então pelos minutos que conseguia abocanhar à cronologia. Vivia, precisamente ao invés do tempo restante, regressado ao tempo primordial.
Mantinha-se tudo intacto na aparência, os compromissos e as contas por pagar. A própria rua não mudara, nem o semblante expectante e carrancudo dos que o esperavam à porta dos deveres e da sua profissão. 
Passeando-se, vagueante pela cidade e seus esconsos, mesmo quando não saía de casa e os passos eram só os da fantasia, ninguém diria que mudara. 
Era esse o seu segredo: tornara-se outro para ser, enfim, a sua própria pessoa. Uma pálida névoa definia-lhe a luz.