sábado, 10 de abril de 2021

Aparências do mesmo


Supôs que naquela parte quase exterior do que fora mansão e de que era agora o único habitante pudesse dar vida a um pequeno negócio e de todos eles, o possível, talvez uma livraria ou algo que tivesse na livraria os seus alicerces.

Havia praticamente em todas as divisões, e mesmo nos mais inesperados locais, livros, dezenas livros repetidos, tantos de sucessivas edições, de distintos editores. E talvez surgissem leitores, daqueles para quem ler uma qualquer obra, folheá-la ao menos, fosse qual a edição, mesmo a mais descuidada, bastasse como realidade suficiente. 

Não que lhe agradasse a ideia, espírito cultivado que era, ele para quem cada livro era um momento próprio na vida do seu autor, e precisamente aquele instante que fundira a indústria tipográfica à arte da paginação, a escolha do tipo e corpo de letra, o desenho da capa, a selecção do papel que seria impresso, o risco de não haver para quem.

Além disso, sentir, antecipada, a intrusão daqueles, formigantes, para quem qualquer livro serviria, ou mesmo a sombra pesada dos que vinham por lassidão ou curiosidade, doía-lhe, mas não não menos do que a noção de que, a não encontrar venda, teria de jogar ao abandono os tomos duplicados, as obras de pior edição, as que a desastrada encadernação assassinara o valor. 

Vender e com isso ter de apreçar, expor-se para que houvesse montra para essa parte inútil da agora sua biblioteca, idos os que sucessivamente lhe tinham dado vida, tornando-a livraria, manter entreaberta a porta gerava em si o desconforto da novidade e da não pertença. 

E depois o entorpecimento de sedentarizar-se para ali estar presente e disponível às horas de comércio, esperar, em modorra e agonia, a chegada do primeiro possível comprador e mais nenhum surgir num dia de alma a chover, não havia palavra que descrevesse o antecipado horror.

Foi a luminosidade na vidraça que o fez desistir. Era Sábado e ninguém na rua onde raramente havia viandantes. 

Começou então a juntá-los, os melhores e os piores, as edições em papel barato e capa a soltar-se, alguns com dedicatórias que o tempo tornara ridiculamente inúteis outros já lombada partida à força de terem sido repetidamente lidos ou dobrados cruelmente no acto de ler, os encadernados e com letras na lombada ferradas a ouro, aparências, afinal, do mesmo, formas tão diferentes de tentarem ser.