domingo, 27 de abril de 2014

Hirto e acorrentado


Sem razão, mas por muitos motivos, este diário descontinuou. É o destino dos que decidem confiar ao papel as suas vivências. As memórias mais verdadeiras são as nunca escritas. Tudo o mais é ficção e excertos de recordação, mesmo quando a do próprio dia. É que há o pudor e a glória.
A vida aqui ganhou novo ciclo com a chegada da Primavera. 
Madame avolumou-se de atrevimento indumentário, expondo, carnuda, as inconveniências, quando propositadamente aparenta descuido, saciando-se, matreira, da ociosidade cansativa em exuberante descanso. 
O Senhor seu Esposo, nos intervalos do indefinido de que faz emprego, dormita no florido varandim, quando faz Sol, ou boceja interioridades rancorosas, sentado num canto do escritório, folheando revistas que não lê, com ilustrações de desinteresse.
Com a passagem do tempo a minha função aqui perdeu-se não só quanto ao fundamento como mesmo no que à função respeita. Pergunto-me porque me pagam ainda ordenado e dou comigo a desempenhar pequenas tarefas, medíocres mesmo na sua vulgaridade, até as que invento para justificar serviço.
Hoje dei comigo a imaginar substituir o canteiro de begónias, ontem a restaurar um velho relógio em que o tempo se imobilizou no mecanismo. Foi então, ao debruçar-me por uma minúscula peça daquele sistema de rodas que se dentavam, mordiscando-se, naquele hirto relógio vertical de pêndulos acorrentados, que surpreendi a Madame o trilhar dos lábios o inferior com a alva dentição, tubarão rodeando quase a esvaída presa.
Creio que na atrapalhação do instante me saiu da boca nem sei que frase, a que trouxe ao rosto da palidez a sanguínea cor, comprometedora. Num ápice estava aqui, refugiado e exaurido, ansioso por descer, receoso ante o fazê-lo.