O ano começara e, constato agora, eu não viera aqui, a este caderno, escrever uma linha sequer. E, ao notá-lo, pesa-me o vazio do espaço em branco, como o daquelas salas da minha infância, recheadas de coisas que me eram vedadas, fechadas à chave, numa solenidade secreta, propensas ao sonho e à adivinhação.
Faziam parte do ritual antigo, locais onde apenas se ia cerimoniosamente, como a sala de jantar e seus cristais ou a sala de visitas carregada de "bibelots".
Tudo o mais, nesse quotidiano tornado vida, era passado nos locais domésticos. Da infância ficou a mesa de cozinha e seu calor morno e aconchegante, as refeições que ali se tomavam em silêncio e o meu quarto, domínio da solidão privativa e sua pequeníssima janela sobre um horizonte inacessível. Tudo o mais é hoje recôndito e longínquo, como uma frase por recordar e de que se perdeu o significado.
Nos dias de grandes limpezas essas pesadas portas dos proibidos salões, que encerravam os lugares míticos do inacessível, entreabriam-se, para logo o trinco as encerrar enquanto decorriam, minuciosos, trabalhos domésticos, entre passos abafados e murmúrios de vozes.
Creio que nunca terei chegado verdadeiramente a atrever-me a ali entrar sem porquê.
Das pouquíssimas vezes que alguém nos visitou, fui chamado por uns breves instantes a uma delas, onde havia sofás de couro e livros numa estante, as portas envidraçadas e uns quadros antigos com cavalos tristes na sua eterna imobilidade. Bebia-se chá e ofereceram-me uma fatia de um solo seco, que polidamente recusei, como me tinham ensinado a fazer, para aceitar depois, após aguardar a insistência e a aprovação para que o fizesse.
Foram breves esses circunstantes desconhecidos na sua formalidade feita simpatia por uns momentos que me dedicaram: como me chamavam e como iam estudos. Balbuciei respostas como a quem me não quisesse, o ritual da polidez. E pedi licença para poder sair.
Depois chegava o Natal. Tudo era então luz e encantamento no jardim maravilhoso das loiças que circulavam para que nos alegrássemos ao comer com o requinte tornado luxo e a vida parecesse contente.
«Tem cuidado não partas nada», advertiram-me, solenes, quando me sentei ante aquelas fragilidades em que nos serviam o jantar. «Nem te sujes, como de costume», acrescentaram.
Hoje sonhei isso mesmo, e vim aqui encontrando a página em branco.
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Fonte da foto: aqui