quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A ténue mancha da memória

 
Houve tempos em que os meus alunos eram turmas extensas, variadas, anónimas porém. A chegada diária ao colégio, para mais umas horas de aulas e umas folhas a vencer do programa, era ritual solitário, intervalado pela compra do jornal. Na rua raramente havia que dizer a quem fosse, por não haver com quem falar. E, no entanto, talvez no esboço de sorriso tímido de alguns dos circunstantes houvesse a evidência de que uma palavra minha abrisse a longa conversa sobre as nossas existências. Nos dias de chuva a sombrinha incerta era protecção, tal como o encandeado do sol, quando o Verão estonteava os seres vagueantes, transformando-os em erráticos insectos, cegos, o voo sem nexo.
Recordei isto tudo esta noite, a sombra do que foi como uma mancha ténue que o bolor tivesse deixado ficar no branco rebocado daquela parede. Nela pregado, um quadro ostenta antiquíssima fotografia: gente de rosto incerto, vidas impossíveis de descortinar.
Esta manhã, vestido o casaco de perceptor, lã castanha, cotoveleiras em cabedal, será tempo de aula de Filosofia. Madame fez-me sentir que os seus meninos têm dificuldade em entender-me. Estive a um passo de abrir excepção, incluindo nisso apenas o rapaz, porque o seu dilecto. A estupidez é congénita quereria dizer se me tivesse atrevido, o equívoco uma fatalidade, perceber-se-ia.