domingo, 6 de novembro de 2011

A ociosidade e o grito

Hoje foi um dia de estranheza e grito. Saí, enfim, para uma volta preguiçosa pelas imediações. O casarão tem a particularidade de não dar a entender que o é, a fachada construída como opulento seio espartilhado a passar-se, púdico, por discreto. 
Dobrava a esquina quando ele chegou, o violento berro. Em sua ira Madame perdera as maneiras e com elas a compostura. Esquecera-me da promessa de lhe encontrar um livro que agora já nem me lembrava sequer qual seria. Pedira-mo na véspera, entre o arrebitado da ordem dominadora e o aconchegar-se do pedido insinuante.
Regressei, pisando a brita húmida daquela manhã incerta. Esperava-me, incontida, como a um serviçal relapso. Ao entrar para o peso centenário da biblioteca seguiu-me a fragrância equívoca da sua pessoa, o acetinado do robe de chambre. Talvez fosse a obra de Thorstein Veblen sobre as classes ociosas, sugeri, como se a rememorar o pedido por cumprir, olhando-a, com acinte raivoso nos olhos gélidos de indignação. «Thorstein Bunde Veblen» acrescentei, provocando-a, «doutorado em Yale, economista, a interessar-lhe».
Sem uma palavra, arrancou-me, num rompante, o livro da mão. Raivosa, jogou-a para a mesinha de entrada, quase fazendo-o estatelar-se no chão. «Um darwinista», rematei, «mostrando a origem simiesca do que há em nós». Em alguns de nós queria dizer, naquele cínico irmanar-me com o que desprezava, a condição a que me tinha sujeitado.