sábado, 19 de novembro de 2011

O fim da inocência

Era um pequeno atado, apertado com um fio barbante, cruzado e laçado, as pontas soltas, a uni-las às cartas que acabaram por ficar de todas as que recebi. E umas quantas fotografias. Tinha-as separado um dia, rasgando tantas, supondo que cada um das que ficassem bastaria para restar o sentimento do que se tinha vivido. 
Agora dava por falta delas e um sentimento de ausência de passado perseguia-me, mas de algum modo surgia-me também, por mais vergonha que tivesse em admiti-lo a possibilidade de renascer, sem sombras nem remorsos.
Nenhum homem sobrevive sem raízes, nisso como nenhuma árvore. E por isso as cartas eram agora uma obsessão e a angústia de não me lembrar onde as teria deixado.
Numa delas meu pai escrevia-me para o colégio interno, admoestando-me por não estudar e carregando-me de recriminações. No final, como se num post-scriptum quase desnecessário, a caligrafia miudinha, a aproveitar um resto de papel, deixou, sentia-se o cerrar os lábios de raiva e desespero: «os negócios vão mal. Espero que tu ao menos sejas alguém». 
Dias depois as penhoras levavam-lhe tudo e ele deu-se destino com suas mãos. 
Quando regressei a casa já não havia a esperar-me memória da sua existência. Minha mãe aguardava-me, silenciosa, à porta, a mala feita, levando-me pela mão, para um quartinho de criada, na casa onde serviria até não lhe ser mais possível. 
O mundo desabara. Fiz-me homem ao observar os adultos. No mundo deles não há espaço para a inocência. Nessa noite jantámos silêncio e lágrimas. Sabíamos ambos que depois disso seria o inevitável dia seguinte, a fotografia rasgada na lembrança.