sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A estranha ascendência

Falou, enfim, comigo. A sala que lhe servia de escritório tinha de imponente a livraria, o seu imenso pé direito, ou sonhei-a assim, restituído depois ao meu quartinho, onde escrevo estas notas. 
Nem sei do que falámos ou talvez nem tivéssemos de que falar, estando o assunto que ali nos levava já resolvido para ambos. 
Caber-me-ia tratar daqueles livros, organizando-os e eram milhares, e da educação de dois adolescentes. Não lhe perguntei se seriam filhos ou talvez netos, nem foi preciso dizer-me se da educação faria parte a instrução. 
Não tive o que posso chamar de coragem para lhe fitar o rosto atentamente, talvez por respeito para com a sua dignidade ou por pudor a que me obrigava ser o que ali representava. Retraído sob as lentes, os óculos davam aos olhos o recolhimento de um míope.
Penso-o como vi o Unamuno, numa fotografia que o tempo amareleceu, no refúgio dos seus papéis, e em ambos o mesmo sentido trágico do existir. 
Perguntei-me sem razão se seria médico. O acento no falar denotava uma qualquer ascendência estranha. Presumi que não se levantaria à minha entrada, mas estendeu-me a mão, indicando-me o lugar que me caberia, uma gunstock, incómoda como todas elas, das que se oferecem a quem queremos por pouco tempo sentados junto de nós.