Contratado como perceptor dos meninos, pouco falo deles e do que é, afinal, a minha profissão. Talvez por não ter tido importância, até ontem.
Todos os dias são levados a um colégio, ainda longe daqui, pelo chauffeur da casa e todos os dias chegam pela mesma forma, quase sempre pela mesma hora. A minha tarefa mais do que fazê-los estudar o que obrigatoriamente deveriam estudar, é transportá-los para outros territórios que a escola não oferece. «Mais da cultura do que do saber», disse-me, no dia em que aqui cheguei, o senhor engenheiro, o olhar ligeiramente distraído como quem repete uma lição de vida feita agora regra de educação. «Poupe-os às banalidades efémeras, se puder», acrescentou, a frase interrompida como se a não querer revelar-me, por pudor, ao que queria significar ou mesmo a quem se queria referir.
Foi ontem, em que por ser sábado, reservamos as manhãs para a conversa e o meio da tarde para exercícios de recapitulação. Terminara o segundo período, com a explicação das declinações, partículas e desinências na gramática alemã. Dos dois irmãos, o rapaz, porque de mais lenta compreensão, arrumava, vexado, os cadernos, confessando, taciturno a humilhação da sua incapacidade. Lesta, o ar provocante em que pressinto o florescer do que se tornou na sua mãe, a irmã, olhava-me, despontante, com o desafio de quem vence pela sagacidade jovem a melancolia daquele que a idade abateu.
Animal mecânico daquele ofício de ensinar, trespassava-me aquele olhar, à espera dos meus olhos.
Foi então que Madame entrou, franqueando a porta sem bater: «Espero que já tenha acabado», lançou-me, como numa áspera censura. «Estas coisas do meu marido são, tal como ele próprio, uma forma de entreter o tempo», rematou, ricocheteando enfim a natureza vil porque utilitária daquela união desinteressante a que ainda chamavam casamento.
Esperei que saíssem. Reuni então, miseráveis pertences, os meus livros e os papéis daquele dia.
Foi então que dei por ele, um canto rasgado do caderno de apontamentos e nele, a simular acaso, a malícia da frase «Alten Fahrrad». A velha bicicleta. Carregada de significações.