sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A incerteza do dizer

Talvez ali mesmo, naquele momento em que o tempo fez sobre o novo os seus estragos, e tudo tem sinais de vida espessamente vivida, naquele local em que a imperfeição marca, com a assimetria e o incompleto, a incerteza humana e o erro, eu pudesse ter ficado. 
Fora num longínquo Verão. Chegámos com um vogar manso da ondulação, a turbina num ralenti que tornava quase imperceptível aquele vogar macio da embarcação até à amurada. Depois veio a noite e com ela o recolher solar, sentados em silêncio em torno do sentido vago dos pensamentos até se nos esgotarem as pálebras. 
Hoje é um quadro numa parede, a da saleta que se ignora ao passar. Poderia ter sido um local onde a felicidade me encontrasse. Mas sou feliz aqui, mesmo ante este excerto do que fui.
«Triste, não é?», perguntou-me, pela primeira vez sentida, aquela que deveria ser a minha aluna, houvesse algo que eu pudesse ensinar-lhe e me fosse permitido. «Um pouco», respondi, evitando fitá-la, adivinhando-lhe dos olhos a intensidade. «Talvez a luz fira a alma», ainda murmurei, incerto já sobre o que dizia, o quadro a diluir-se na brancura da parede, a coloração a desmaiar sobre a imensidão do nada.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A ténue mancha da memória

 
Houve tempos em que os meus alunos eram turmas extensas, variadas, anónimas porém. A chegada diária ao colégio, para mais umas horas de aulas e umas folhas a vencer do programa, era ritual solitário, intervalado pela compra do jornal. Na rua raramente havia que dizer a quem fosse, por não haver com quem falar. E, no entanto, talvez no esboço de sorriso tímido de alguns dos circunstantes houvesse a evidência de que uma palavra minha abrisse a longa conversa sobre as nossas existências. Nos dias de chuva a sombrinha incerta era protecção, tal como o encandeado do sol, quando o Verão estonteava os seres vagueantes, transformando-os em erráticos insectos, cegos, o voo sem nexo.
Recordei isto tudo esta noite, a sombra do que foi como uma mancha ténue que o bolor tivesse deixado ficar no branco rebocado daquela parede. Nela pregado, um quadro ostenta antiquíssima fotografia: gente de rosto incerto, vidas impossíveis de descortinar.
Esta manhã, vestido o casaco de perceptor, lã castanha, cotoveleiras em cabedal, será tempo de aula de Filosofia. Madame fez-me sentir que os seus meninos têm dificuldade em entender-me. Estive a um passo de abrir excepção, incluindo nisso apenas o rapaz, porque o seu dilecto. A estupidez é congénita quereria dizer se me tivesse atrevido, o equívoco uma fatalidade, perceber-se-ia.