quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A necessidade e a honra

Podia ter sucedido em qualquer outro dia, mas foi naquele dia. Chegou o primeiro correio para a que seria doravante a minha nova morada. Uma carta do banco e um embrulho oriundo de uma livraria. 
Hesitei qual abrir, se começando pelo que sabia poderiam ser más notícias. Eram. O saldo da minha conta bancária descera uma vez mais abaixo da linha de água. 
Não sei se sabem como é a vergonha de uma pessoa consigo mesma por não saber onde encontrar com que honrar os seus compromissos. E eu tinha compromissos que me sujeitavam àquele trabalho. Não vem a propósito falar deles, porque a própria memória afunda-os nos recantos da lembrança, tornando-os rotina. Apenas os débito em conta, pontuais, certos na sua regularidade mensal, os fazia ser verdade e pesadelo. Além disso eu tinha do estilo cavalheiresco a ideia de que em caso algum perguntaria quando me pagariam naquela casa pelo meu trabalho. Mesmo o quanto ficara na penumbra da indefinição.
Tenho-o agora aqui comigo, ainda por abrir, o que sei ser o livro. Talvez lê-lo me ajudasse, refugiando-me nas suas páginas, misturando-me nas suas páginas. Podia ser uma história russa carregada de aristocracia e de salões literários. E de melancolia amorosa.
Sei tudo antes de ler e por isso não leio. O que eu recuso na vida não é a história da vida, é ter de ser eu a vivê-la.Como uma peça musical de que fosse o magnífico intérprete e o impossível compositor.

domingo, 16 de outubro de 2011

A silhueta de um olhar

Talvez um recanto de parede, com o reboco a esboroar, ou um muro de pedra assolado por líquenes e atapetado de musgo tenham mais história do que a monotonia de vida de certa gente. Tenho-me perguntado, perscrutando o silêncio abafado destes longos corredores, em que esgotarão os dias aqueles poucos com os quais me cruzo quando se dão à vista de todos os outros.
São talvez assim as famílias cuja nobreza seja a recolhimento, poupando-se à vulgaridade da presença, defendendo-se da banalidade do vulgar coloquial. 
Esta manhã de domingo, na rampa empedrada que conduz à linha de água, e nela se atravessa uma pequena ponte para um pequeno bosque, iniciado por uma empinado montículo, onde todos os mistérios e enigmas são possíveis e mesmo até, no seu sombrio, intimidades e segredos, vi-a. 
A silhueta recortada desenhava um leve ondular, feito de passos curtos de minúsculos pés, e de um ligeiro alçar, a mão em bico, a prega do folhado e assim o longo vestido, para que não arrastasse pelo chão. 
A certeza tive-a quando, ao franquear o momento da ponte, olhou para trás como quem quer ter a certeza de não ser seguida, ou até mesmo a segurança de não ser vista.
Poderia ter sido o respeito que me levou a esconder-me, rápido o gesto, por detrás da cortina. Mas foi o pudor, um nascente sentimento, gémeo do desejo, filho da curiosidade, que me fez evitar-lhe o olhar.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A ira e o espanto

Poderíamos ter começado com as declinações do Latim. Ou com lições sobre a História da Transcaucásia. Ou mesmo com a taxonomia botânica de um herbário sobre folhas lanceoladas. Havia ali de tudo naquela imensa biblioteca, como um saber concêntrico de saberes circulares que nunca se encontravam, uma geometria dos infinitos planos paralelos. E eu teria que os preparar entra a cultura das Humanidades e das Mundanidades.
Arrisquei, naquela que era a minha primeira lição, uma primeira pergunta a fazer-se de inteligente: porque é que uma imagem entre dois espelhos, que estejam precisamente frente a frente, se multiplica até ao infinito? E, para que pela antecipação surgisse o paradoxo da resposta acrescentei como quem balbucia: «se é que o infinito existe...».
Tímido, refugiado por detrás de uns óculos espessos, o rapaz arriscou: «existe sim, até ao ponto em que já não o conseguimos alcançar com a vista». E talvez para me não deixar mudo de espanto, fez como quem emenda: «Tal como o horizonte, sobretudo visto com os olhos fixos no mar».
Gostaria de me recordar mais do que sucedeu nesse dia. Talvez a tristeza de o dia a acabar e não ter conseguido reconstrui-la, na minha cabeça, onde estaria a sua silhueta de aluna sequer, já nem digo a presença, naquele instante. Num recanto da longa mesa, copiava, indiferente, um longo exercício de verbos franceses, apenas pela maldade de a ter feito copiá-los, fustigando-me com a sua esperada ira.